O piá do prédio vs O Excelso ser – Parte I

Esse é um texto difícil de começar a escrever, porque quero fazer o exato oposto do que me manda os instintos. Cresci lendo pessoas que debatem com sangue nos olhos e admirando esse tipo de gente, que fala a sua opinião sem falsas delicadezas ou modéstias, de forma direta e clara. O instinto básico, para mim, é seguir esse tipo de embate, que vemos, por exemplo, na acidez do Olavo de Carvalho ou no sarcasmo do Ben Shapiro. Mas lembrei do grande debate do Flavio Morgenstern contra o Igor Fuser e acho que as pessoas que tem algum interesse em ver a sociedade melhorar deve buscar não debater como um político que deseja vencer, mas tentar informar e expor sua opinião, com tranquilidade e serenidade. Então, no lugar de responder pedaço por pedaço o texto dele, vou explicar minha posição. E o fato que você precisa entender antes de qualquer coisa é: Estamos falando de algo muito maior do que a possibilidade de dois gays assinarem um papel ou adotarem uma criança.

1 – Da humildade e do dever do cristão

O reconhecimento dos limites insuperáveis do seu conhecimento deveria ser, para aquele que estuda a sociedade, uma lição de humildade tal, que ele desejasse manter-se longe de qualquer eventual cumplicidade com o esforço fatal do homem no sentido de controlar a sociedade — esforço que não apenas faz do homem um tirano de seus concidadãos, mas também pode levá-lo a destruir uma civilização que não foi engendrada por cérebro algum: uma civilização que tem prosperado como resultado dos esforços livres de milhões de indivíduos. [1]

Ser humilde é, antes de qualquer coisa, não deixar que você se veja como algo muito maior do que você é. Apesar de ser uma palavra muito usada, a qualidade em si é rara, quando muito, conseguimos controlar parcialmente nosso senso de superioridade. O ser humano é imperfeito por natureza e um dos nossos instintos é justamente colocar nossos interesses acima dos interesses alheios. Dessa forma, humildade não nos é inata, mas um exercício contínuo. Ser humilde talvez seja uma daquelas qualidades universais. E esse é um dos deveres dos cristãos.

E não, não sou eu quem digo isso. João Paulo II disse que “A filosofia cristã contém dois aspectos: um subjectivo, que consiste na purificação da razão por parte da fé. Esta, enquanto virtude teologal, liberta a razão da presunção — uma típica tentação a que os filósofos facilmente estão sujeitos.”[2], assim como a Bíblia diz que “Não julgueis, para que não sejais julgados”[3]. É impossível qualquer pessoa que seja cristã, ou tenha sido, desconhecer o valor da humildade.

Mas o que isso importa nessa discussão? A leitura da escritura sagrada e a sua pregação deve ser sempre feita em condição de humildade e submissão ao Senhor. É insanidade, talvez até mesmo um pecado, alegar que o Augusto tem uma procuração para falar em nome de Deus. Não. Todo e qualquer cristão tem uma obrigação de PREGAR a palavra, tentando interpretá-la usando o conhecimento dado pelo Espirito Santo. Você não fala em nome de Deus, você deve entregar seu corpo e sua alma para que ele fale ATRAVÉS de você. Nenhum cristão tem o direito de falar em nome de Deus, pois o ser humano é impuro e imperfeito, portanto, não pode traduzir a vontade de Deus usando seu raciocínio. Quando você lê a Bíblia, você está pedindo que Deus lhe conceda informação e deve sempre cuidar para não cometer um erro, pedindo perdão ao Senhor todas as vezes que, por incapacidade de interpretação, entende errado o que ele disse. O que ele fez, por sua vez, foi colocar-se na posição de um advogado de Deus, um indivíduo que por ter mais conhecimento (ou ao menos, conhecimento semelhante) pode falar em nome de Deus o que ele não quis dizer.

2 – Da ignorância do crítico

O Direito é, por conseguinte, um fato ou fenômeno social; não existe senão na sociedade e não pode ser concebido fora dela. Uma das características da  realidade jurídica é, como se vê, a sua socialidade, a sua qualidade de ser social.[4]

Será que o Augusto não sabia disso tudo que eu disse acima? Claro que sabia, meu conhecimento de cristianismo é risível. O que ele desconhece é um termo jurídico como “procuração” e a sutil questão que levantei, considerando óbvia. Só explicando, procuração é um documento que concede poderes para que um outro indivíduo faça atos em seu nome, como se fosse um substituísse o outro. Poucos segundos de raciocínio são o suficiente para perceber que um mero humano não poderia substituir um ser onipotente. Claro, algumas exceções ocorreram onde Deus entregou pequenos poderes, mas no máximo esses (como os profetas) seriam meros prepostos. Procurador de Deus, ou seja, representante direto, somente, forçando um pouco o termo, aliás, Jesus Cristo.

Isso explica muito bem o Augusto não ter entendido o ponto central do meu argumento: Ele não entende o que é o “direito” ou o “ordenamento jurídico”. Para ele, a norma escrita tem funcionamento semelhante ao código moral. É triste uma pessoa não entender, em absoluto, a questão suscitada e mesmo assim querer discutí-la. Não entrei no mérito do “certo” ou “errado”, mas somente no mérito da “legalidade”. É uma discussão política e legal que é sustentada por outra, filosófica e moral, mas que ambas não se confundem. Esse é um erro recorrente do Augusto, típico de quem não conhece o funcionamento real da lei, seus princípios intrínsecos à sua execução (como a isonomia) e a sua existência como uma única lei.

Apesar do que nosso ordenamento aparenta, a Lei é uma coisa só e que precisa ser consistente, possuir uma lógica interna. Assim, a mudança na lei exige que a própria lei como um todo(inclusive seus princípios) se modifique em um sentido e os executores da lei devem, em nome da segurança jurídica, aplicar a lei tendo em consideração o “espirito da lei” e não as crenças individuais. Não é possível (ao menos, não deveria) abrir exceções utilitaristas na lei. No caso em questão, ou revoga a qualidade cidadã do homossexual, ou o princípio da isonomia.

3 – Do conflito entre lei e moral

Ainda analisando a lei, o ordenamento jurídico se diferencia da moral, as vezes entra em conflito direto com ela, porque são coisas de naturezas distintas. A moral é íntima, mutável, e usa a coação para orientar. A lei é erga omnes, estável e usa a coerção para PROIBIR. Analisemos cada aspecto separadamente:

A moral ser íntima significa dizer que cada indivíduo tem a sua. Seja ela certa ou errada, você aplica ela em sua vida e pode convencer as pessoas a seguirem suas ideias. Pode se guiar por livros filosóficos ou sagrados, mas ainda assim a revelação da “verdade” vem por intermédio da reflexão e meditação (ou do Espirito Santo iluminando sua alma). A construção de um código moral é um processo individual. A lei, por sua vez, tem efeitos sobre TODOS os indivíduos na sua jurisdição. Isso quer dizer que ela deve agradar ao máximo a sociedade como um todo. Se a lei é feita para impor posicionamento individual, ela geral, inevitavelmente, ditaduras, pois todo radical acredita e convence o mundo que é um escolhido para coordenar a sociedade. Não atoa, toda vez que alguém tentou guiar a sociedade para o paraíso por intermédio da coerção, gerou milhares (as vezes milhões) de mortes.

Ser mutável significa dizer que a moral muda com a sua vivência e seu aprendizado. A cada dia que passa, nós aprendemos e nos adaptamos a esse aprendizado, amadurecemos. A busca pelo conhecimento e pela verdade é uma caminhada infinita, onde a cada dia você se aproxima mais, porém nunca alcança a verdade absoluta, pois somos imperfeitos por natureza. A lei por sua vez precisa ser estável para garantir sua legitimidade. Se a lei muda todos os dias, à discricionariedade do líder supremo, você não tem uma lei de fato, mas mandos e desmandos de uma sociedade despótica. A lei, se não for uma lei mínima, deve refletir uma mudança cultural e moral da sociedade, quando o ponto já for pacífico.

A coação é um sentimento subjetivo de punição ou ameaça. É o caso da sociedade que estigmatiza a prostituta. Isso é uma ferramenta típica da moral humana. Atos imorais causam rejeição e ojeriza. Sendo um preconceito ou não, não importa, pois a tradição tem seu valor (como bem explica Hayek[5] e Russell Kirk[6]) e esse é uma das coisas mais difíceis para explicar à mente revolucionária, o valor do preconceito para a sobrevivência da humanidade. Por outro lado, a coerção é o uso da violência[7] e é típica do poder de polícia estatal, sendo uma forma de conter a violência contra as liberdades individuais.

Por fim, o aspecto que julgo mais importante nessa diferenciação: A moral serve como uma orientação, um conjunto de princípios norteadores do que é certo ou errado. Caso você julgue necessário, o código moral pode ser desobedecido ou existir exceções a depender da necessidade da situação. Ofender alguém é “errado”, mas não é imoral se a outra pessoa provocar. A lei por sua vez, tem força de proibir e toda lei é, na prática, uma obrigação de não fazer[8][9] que sempre limita a liberdade individual[10]. Após publicada, a lei deverá ser cumprida desde que ela cumpra os requisitos da legalidade. No caso prático, tem o juiz alguma discricionariedade, mas deve cumprir a lei[11].

Expus aqui os aspectos mais amplos das questões legais e religiosas que abordei. No próximo texto, explico o caso em questão e a posição totalitária que o Augusto defendeu, sem perceber. Por sua vez, acho importante salientar uma coisa: Aqueles que tentaram criar uma lei para gerar uma sociedade perfeita, sempre findaram com os piores massacres da nossa história. Não porque eram marxistas (como Stalin), afinal, Pinochet matou 70 mil e não foram também menores os massacres de Saladino e Ricardo Coração de Leão. Não é necessário uma ideologia “demoníaca” (como Olavo chama a teoria maquiavélica) para gerar esses massacres. O autoritarismo e o totalitarismo são métodos genocidas por sí.

 

[1] – A pretensão do conhecimento – F. A. Hayek

[2] – Carta encíclica – Fides et ratio – Papa João Paulo II

[3] – Mateus 7:1

[4] – Lições Preliminares de Direito – Miguel Reale

[5] – Arrogância Fatal – F. A. Hayek

[6] – Dez princípios Conservadores – Russell Kirk

[7] – A Ética da Liberdade – Murray N. Rothbard

[8] – Direito Administrativo – Maria Sylvia Zanella Di Pietro

[9] – Mesmo quando a lei ordena expressamente, é na prática uma obrigação de não fazer. Quando a lei obriga a empresa a contratar um deficiente a cada cem funcionários, ela não obriga você a contratar, mas proíbe você de ter mais de 100 funcionários e não ter um deficiente. Ser uma proibição fica claro quando você percebe que a empresa pode, simplesmente, se manter com somente 99 funcionários e não ser obrigada a nada. A única exceção é no chamado “poder-dever”, pois o estado é realmente obrigado a cumprir suas funções.

[10] – O caminho da Servidão – F. A. Hayek

[11] – Com o crescimento do direito positivo progressista, esse entendimento vem sendo cada vez menos levado em consideração, de forma que hoje o conceito de justiça social é mais importante. De qualquer forma, nesse aspecto tenho certeza que o Augusto concorda comigo: A discricionariedade da “sociedade civil” (que é basicamente os militantes de esquerda) é muito pior do que uma lei, por mais injusta que seja.

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