O piá do prédio vs O Excelso ser – Parte II

No texto passado, ficou algumas lições básicas sobre a lei e a moral e suas diferenças. Me focarei em três aspectos da lei nesse texto: A coerência interna (segurança jurídica), o uso da violência para cumprir seus objetivos (coerção) e o princípio norteador da lei democrática (isonomia). Para tanto, é necessário explicar o valor de cada uma das três coisas e assim poderemos, dessa vez, entrar no assunto que é: Casais homossexuais adotando crianças abandonadas.

Começando pela isonomia. Apesar do seu nome e significado, ela não é parte do igualitarismo marxista. A isonomia é o princípio que diz que “todos devem ser iguais perante a lei”. Em outros termos: É proibido ao estado (e seus servidores) discriminar as pessoas. Ninguém pode sofrer sanções pela sua aparência, passado, etnia, crença ou qualquer característica individual, somente pode ser julgada pelos seus atos e omissões (e devem todos serem julgados com a mesma austeridade).

O valor da isonomia é que, sem ela, o estado se torna uma sociedade oligocrática comandada pelos mais fortes, mais ricos ou até mesmo os mais coitadinhos (como preconizava Marx e sua ditadura do proletariado). É também uma forma de evitar abusos por parte da autoridade. Perceba: É um princípio básico do liberalismo, conservadorismo e do pensamento reacionário como um todo. A sua revogação (que já está quase acontecendo com a ideia de “igualdade material” que consiste, justamente, distorcer todo o conceito de isonomia) é um grande salto em direção ao despotismo.

A coerção, ignorando as lições anarcocapitalistas que merecem uma análise a parte, é considerado um método válido de conter outras formas de violência. O chamado poder de polícia existe como uma espécie de terceirização, ao estado, do direito de autodefesa. Exceto os anarquistas, todos concordam com o uso da coerção por parte do estado, sendo discutível somente os seus limites.

Para o liberal, o uso da coerção deve se limitar à defesa da liberdade individual e a propriedade. Para o conservador, ela deve proteger a liberdade, a propriedade e a ordem social, sendo lícito a agressão preventiva em casos de iminente ameaça. Ao socialista, por sua vez, cabe ao estado a proteção de vários (quase tudo, na verdade) direitos, deveres, liberdades e princípios. Somente ao socialista (e esse é um ponto bem importante) se entende que cabe ao estado otimizar a sociedade, inclusive, manipulando a moral do indivíduo se assim fizer necessário.

A coerência, que chamamos de segurança jurídica, existe, por fim, para proteger a isonomia e o uso legítimo da força (de novo amigo ancap, não me xingue). Sendo a lei uma norma geral, ela precisa ter uma unidade lógica para, quando o servidor aplicá-la no caso prático, ele ter uma noção de em qual sentido a lei irá levá-lo e assim ter mais uma garantia de que ela está sendo interpretada corretamente e que aquele processo vale de alguma coisa. O controle dessa segurança é feito de variadas formas.

No constitucionalismo, temos uma lei máxima que indicam os princípios da lei inteira, como se fosse uma chave de criptografia (ou um DNA). E o verificador é o chamado “controle de constitucionalidade”. Esse controle é feito na hora de criar a lei, de interpretá-la e até mesmo existe um controle posterior (chama-se recurso extraordinário aqui no Brasil). Sem essa coerência, não demora muito para a lei se tornar um amontoado de normas desconexas que permitem e proíbem qualquer coisa, cabendo aos governantes interpretarem como parecer mais sensato (ou cômodo). Como o Brasil hoje, aliás.

No caso da adoção homossexual, os “problemas” apontados raramente passam desses: Pedofilia, enfraquecimento da moralidade da sociedade, falta de figura paterna ou materna e danos a psicologia do infante.

O primeiro é barrado pela própria lei: Ninguém pode sofrer sanção por ato que não cometeu. Além disso, heterossexuais podem ser pedófilos também, então não faz sentido algum a lei proibir uma possibilidade e deixar a outra. A solução, nesse caso, é retirar a criança da mão dos pais e deixar que o estado cuide dela. Tipo Esparta ou a URSS.

O enfraquecimento da moralidade, se combatido pela lei, deve ter como critério o código moral do estado (ou melhor: dos seus governantes). Esse código moral deverá ser introjetado através da revolução cultural, até que não exista mais uma moral estatal, mas somente o partido e o estado como uma “autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico”. Se você gostou da ideia, recomenda-se a leitura de Gramsci, Maquiavel, Lukács e Foucault.

A falta da figura paterna ou materna não envolve somente os casais homossexuais, mas também casais divorciados ou viúvos com filhos. Ora, esse tipo de criação é amplamente aceita na nossa sociedade a 30 anos. Ok, talvez seja errado, mas é pacífico na sociedade e a sua mudança necessita do direito positivo, que não contente em regulamentar a sociedade, inova nela. É a criação do planejamento central, que protege a sociedade dela mesma. Surge a figura da tecnocracia, do estado babá, que assumindo a incapacidade dos seus governados, protege a sociedade da perigosa tomada de decisão que gera erros. “O homem é o lobo do homem”, como diria Hobbes.

Por fim, o dano psicológico do infante precisa, em lei, de uma regulamentação do que é a psicologia “normal”. Pode ser feito através dos tecnocratas também (contratando inúmeros psicológos para definir isso), mas imagino que aqui os nossos líderes tenham uma solução “melhor”: A criação de uma longa e específica lei sobre o que é a psicologia normal, sendo forçado ao tratamento aquele que se diferencia desse normal. Mas qual é o padrão? Ou melhor, quem é o molde do “ser humano” normal? Ninguém melhor do que o próprio legislador, esse ser excelso e de extrema boa vontade, sempre agindo em interesse da nação.

Tudo muito bom, não é? Ora, se a régua moral da sociedade será o legislador, será bom ou ruim a depender de quem seja o legislador. Talvez um Eric Voegelin ou o Ludwig von Mises sejam boas réguas morais para regulamentar a sociedade, mas também o seria Karl Marx e Rousseau? Talvez fosse maravilhoso um Ron Paul, mas e se fosse um Obama? Em teoria a ideia é boa*, mas depende de quem é o executor, não é? Então podemos colocar o próprio Augusto nessa posição, para fazer jus ao seu nome, que vem de Augustus. Já temos aqui nosso Octavianus Augustus II. HAIL CAESAR!

Só que tinha uma pedra no meio do caminho. Como bem explica Bakunin, Lord Acton, Hayek, Rothbard, Mises, Russell Kirk, Eric Voegelin, Mário Ferreira dos Santos e Santo Agostinho, entre tantos outros que ainda não li mas sei de antemão que dizem isso, o poder corrompe e atrai justamente os piores. Ora, só busca o poder quem QUER o poder. O esforço para alcançá-lo faz com que você precise fazer coisas imorais em nome dele, de forma que, como bem sintetizado por Douglas Adams numa única frase: “É um fato bem conhecido que todos que querem governar as outras pessoas são, por isso mesmo, os menos indicados para isso.”

Ora, além de vários outros problemas, o principal da ideia da régua da padronização do certo e o errado por meios legais é que todo mundo quer ser a régua, mas somente os mais sociopatas conseguem chegar ao poder suficiente de criá-la. Vejamos o Brasil de hoje, será que é do agrado do Augusto que a régua moral da nossa sociedade seja Dilma, Lula, Marilena Chauí, Emir Sader e tutti quanti? Seria George Soros, Putin, Obama, Clinton e todo o resto dos nossos líderes boas réguas? Porque eles acham, como você, que eles próprios seriam boas réguas. Mas diferente de você, eles tem o poder de serem.

Disse, em outro texto, que talvez  o Augusto esteja certo e eu tenha ideias marxistas, mas quem defende os métodos de planejamento central é ele. Ele diz que não se preocupa com o que eu defendo, mas com o que isso gera. Verdade, igual é a minha preocupação, só que talvez eu esteja olhando um pouco mais longe. Ele está preocupado com acontecer uma revolução cultural mundial nos próximos 5 anos. Eu me preocupo com a possibilidade de, daqui a 50 anos, ela não ter acabado ainda.

Quando ele não entende o que eu digo e eu (talvez) não entendo o que ele diz, apesar de ambos aparentarem estar bem informados (ou ao menos informados pelas mesmas fontes, sejam elas boas o suficiente ou não), nada é a maior prova do sucesso da revolução cultural, ao ponto de, de um lado, um liberal ser obrigado à defender os objetivos do socialismo, do outro, o conservador ser obrigado a defender os seus métodos. Nós fomos criados a pensar como socialistas, isso ainda está em nós.

É por isso que sou só um piá de prédio e não tenho convicção de que serei mais do que isso um dia. Só aviso ao Augusto, tão sábio, um fato que deveria ser óbvio para ele: Você não vai poder, no momento, evitar a revolução cultural, porque ela já aconteceu e sua mentalidade é prova disso. Somos frutos da idiotização e demorará décadas, talvez uma eternidade de estudos, para sair desse estágio de burrice do mundo que nos cerca.

A solução que proponho é, antes de enfrentar o inimigo, conhecê-lo. Antes de ir para a batalhar, reorganizar as formações e reforjar as armas. Mas para isso, a humildade, que falei no primeiro texto, é fundamental. Venha ser um piá de prédio como eu e tentar entender a sociedade primeiro, para só depois governá-la.

Se o conhecimento traz problemas, não é a ignorância que os resolve.

Isaac Asimov

* Não é não, como já provou Rothbard em “O igualitarismo é uma revolta contra a natureza”. Mas, como disse, se for levar a discussão para o conflito dos ancaps com o resto, passaremos uma vida aqui discutindo PNA vs Constitucionalismo e não sairemos disso.

5 comentários

  1. Certo, agora eles ficam esperando aprovação. Vou contestá-lo daqui a pouco. =P

    A propósito, ótimo blog. Seu e-book conseguiu me ajudar bastante (sou novo no cenário político, hehe), apesar de eu ser preguiçoso demais para ler um livro até o fim.

    1. Muito obrigado. Pode contestar a vontade, os comentários são moderados por razões legais (e para evitar spams)…

  2. Ok, vamos lá.

    Você trouxe um bom argumento à mesa: O de que a moral não pode ser imposta através da lei. Eu concordo com isso a parte, pois a imposição da moral através da lei pode ser catastrófica e nós já temos exemplos históricos de sobra. Por mais que o Augusto (sou o tal “amigo do fórum”, btw) veja isso como burrice, a verdade é que a lei é capaz de legitimar o próprio relativismo moral que nós repudiamos (o relativismo moral nada mais é que a crença de que verdades morais são legitimadas pela sociedade ou cultura [1], algo que os nazistas usaram para justificar o genocídio de judeus e que os islâmicos usam para cometer atrocidades que já conhecemos). É a chave para o controle de massas, grosso modo.

    Entretanto, não podemos separar a moral de facto do meio jurídico. De forma simplificada, a moral é o estudo da aplicação da ética no cotidiano. A falta de ética no campo jurídico e legislativo é o que origina os exemplos de corrupção e descasos com o povo que somos claramente capazes de ver, é obviamente algo indesejável. Logo, a moral não deve se separar do meio jurídico.

    A moral também tem seu peso claro em determinar o que é certo e errado. Sem o uso da moral (não necessariamente da judaico cristã) como bússola, não seríamos capazes de afirmar que matar, roubar e estuprar são práticas erradas. Logo, sem a moral é impossível determinarmos por lei que tais práticas devem ser combatidas.

    Já que as leis que combatem o assassinato, o roubo e o estupro são leis baseadas em valores morais, isso não significaria uma imposição de valores morais legítima e desejável através do meio jurídico? O que você tem a dizer quanto a isso?

    Mero palpite meu. Eu nem deveria estar aqui, mas como interações com pessoas mais inteligentes que eu me rendem mais conhecimento que estudos propriamente ditos, acho que vale a pena dar a cara a tapa de vez em quando, hehe.

    [1] – http://plato.stanford.edu/entries/moral-relativism/

    1. Eu concordo contigo, não acho que a moral deva ser esquecida, mas ela não pode ser a única fonte do que é legal. Explico:

      Existe uma diferença muito grande (ou deveria existir) entre algo ser “errado” e algo ser “ilegal”. Num ordenamento jurídico bem feito (ou como definiria Santo Agostinho: numa lei justa) tudo que é ilegal é errado, mas ainda assim, nem tudo que é errado, será ilegal. Peguemos o exemplo do cristianismo: Desonrar pai e mãe é errado, mas não ilegal, pois uma lei proibindo isso seria de difícil aplicação (quem vai definir o que é honra ou desonra é o juiz, que pode ser relativista, por exemplo). Essa é a separação que prego: Algumas coisas, que geram prejuízos aos direitos individuais, serão proibidas (ilegais), o resto, continuará somente sendo errado.

      “Já que as leis que combatem o assassinato, o roubo e o estupro são leis baseadas em valores morais, isso não significaria uma imposição de valores morais legítima e desejável através do meio jurídico? O que você tem a dizer quanto a isso?”

      Sim e não. Esses são valores morais, mas não são impostos porque eles são universais. A defesa da vida e a autopropriedade, por exemplo, existem desde sempre, são os chamados valores naturais (de onde vem o jusnaturalismo). Um exemplo de valor imposto, por exemplo é “o homem de bem não precisa andar armado”. Esse é um valor imposto pelo direito positivo, que veio da cultura europeia, onde as pessoas raramente portam armas. Direito natural vs direito positivo é um assunto muito extenso, mas basicamente, no primeiro você não cria nada, somente escreve uma noção que já existe na realidade e portanto, a imposição é feita pela própria natureza humana.

      1. “Sim e não. Esses são valores morais, mas não são impostos porque eles são universais. A defesa da vida e a autopropriedade, por exemplo, existem desde sempre, são os chamados valores naturais (de onde vem o jusnaturalismo). Um exemplo de valor imposto, por exemplo é “o homem de bem não precisa andar armado”. Esse é um valor imposto pelo direito positivo, que veio da cultura europeia, onde as pessoas raramente portam armas. Direito natural vs direito positivo é um assunto muito extenso, mas basicamente, no primeiro você não cria nada, somente escreve uma noção que já existe na realidade e portanto, a imposição é feita pela própria natureza humana.”

        Ao meu ver, a universalidade de valores morais – por si só – não importa no campo dos direitos. De nada adianta alguém ter o direito natural de não ser um escravo sem que existam os meios legais que proíbam a escravização, por exemplo. Portanto, precisamos de leis que defendam esses valores universais, e elas naturalmente impõem estes valores. Então, a seguir por essa lógica, é normal que leis baseadas em valores morais sejam impostas.

        “Existe uma diferença muito grande (ou deveria existir) entre algo ser “errado” e algo ser “ilegal”. Num ordenamento jurídico bem feito (ou como definiria Santo Agostinho: numa lei justa) tudo que é ilegal é errado, mas ainda assim, nem tudo que é errado, será ilegal. Peguemos o exemplo do cristianismo: Desonrar pai e mãe é errado, mas não ilegal, pois uma lei proibindo isso seria de difícil aplicação (quem vai definir o que é honra ou desonra é o juiz, que pode ser relativista, por exemplo). Essa é a separação que prego: Algumas coisas, que geram prejuízos aos direitos individuais, serão proibidas (ilegais), o resto, continuará somente sendo errado.”

        É verdade que o que é errado não é necessariamente ilegal e vice-versa (ou o contrário: Nem tudo que é certo é legal), não por causa do relativismo, mas porque as leis podem ser falhas e os legisladores podem ser corruptos. Sendo assim, o que deveria ser legal e o que deveria ser ilegal? Eis a grande questão que, como um mero palpiteiro sem nenhum conhecimento acerca de Direito, não tenho ideia de como responder, mas vamos raciocinar um pouco:

        Usemos como exemplo o caso da adoção de crianças por “casais” gays (não vou discutir sobre o uso do termo ‘casal’, não convém nesse tópico). Se for comprovado que a longo prazo a adoção de sua parte causa efeitos nocivos à criança e posteriormente à sociedade como um todo (pois nossas ações individuais afetam necessariamente o coletivo), não seria legítimo desaprovar a adoção por casais gays?

        O problema é que o raciocínio anterior implica a seguinte premissa: Que o que é nocivo ao indivíduo deve ser proibido. Não preciso dizer que o escopo do que é ‘nocivo’ ao indivíduo pode nos levar ao domínio do Estado babá, então pulo a dissertação sobre essa parte.

        Então a proibição da adoção por parte de casais gay só pode ser justificada pela defesa da manutenção de uma ordem social. E a afirmação a justificar seria a de que a adoção por ‘casais’ gay é uma ameaça à ordem social vigente.

        Porém, a afirmação estaria correta? Quais as evidências de que uma criança adotada por gays há de se rebelar contra sua própria herança genética, que a identifica como heterossexual, e se tornar gay (não digo que existe um gene gay)? Quais as evidências de que a heteronormatividade, segundo o jargão gayzista, seria violada ou subvertida sendo que os gays correspondem à grande minoria da sociedade? Enfim, quais as evidências de que há uma ameaça à “ordem social vigente”?

        Enfim, o lado liberal traz um bom argumento quanto à defesa dos direitos individuais, mas e quanto ao coletivo? Se for para o bem da sociedade, não seria necessário violar os direitos individuais de alguém? Eu defendo que sim.

        O problema que eu vejo com alguns liberais é que eles puxam demais para o lado do individualismo e esquecem que o equilíbrio/meio é uma virtude, tal como diria Aristóteles. Chuto também que este é o motivo principal pelos quais conservadores e liberais, apesar de serem de direita, vivem se batendo.

        Meu texto ficou muito longo e talvez confuso, então qualquer coisa me desculpe. ‘^^

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